Não posso dizer que não fui avisado. “Meu filho”, adverte o sábio e experiente pregador do Eclesiastes, “[…] fazer livros é um trabalho sem fim, e muito estudo cansa o corpo” (Eclesiastes 12,12). Quem se embrenha na história dos judeus tem de estar absolutamente ciente das imensas cordilheiras de obras de letrados que se alteiam às suas costas. No entanto, há quarenta anos concordei em completar uma história dos judeus, que ficara inacabada com a morte de um desses eruditos, Cecil Roth, que dedicou toda a vida ao assunto. Nessa época, eu estava trabalhando numlivro sobre os Rothschild e a Palestina. Junto com um amigo e colega na Universidade de Cambridge, Nicholas de Lange, estudioso da filosofia judaica na Antiguidade tardia e tradutor de Amós Oz, eu vinha me educando, às custas dos estudantes, em história pós-bíblica num seminário informal realizado em meu apartamento no Christ’s College. Durante algumas horas, depois do jantar, sábios, falsos messias, poetas e agitadores se juntavam a nosso grupinho. Comíamos nozes, contávamos piadas, bebíamos vinho… E nossas taças transbordavam de palavras judaicas. Entretanto, Nicholas e eu tínhamos organizado essas reuniões por um motivo sério. Parecia-nos que, fora do estudo dos textos rabínicos do período pós-talmúdico, não existia outra área que justificasse que estudantes de história ou literatura se reunissem para falar da cultura judaica, e isso era já em si um sinal de quanto o tema tinha se afastado da corrente acadêmica dominante. Quando surgiu o convite para eu terminar o livro de Roth, havia outras razões prementes para que eu quisesse fazer uma ligação entre a história dos judeus e do resto da humanidade. Estávamos em 1973. A Guerra do Yom Kippur, entre árabes e israelenses, tinha acabado de acontecer. Apesar de outro sucesso militar israelense, o estado de espírito era tão contido quanto fora eufórico sete anos antes, depois da Guerra dos Seis Dias. Este último conflito tinha sido bastante difícil, sobretudo durante o ousado avanço egípcio, que cruzou o canal de Suez e penetrou no Sinai.
As areias estavam mudando de lugar; o que antes parecia seguro tinha deixado de ser. Os anos que se seguiram viram a história judaica, em ambas as extremidades de sua cronologia multimilenar, tornar-se ferozmente autocrítica em relação ao triunfalismo. A arqueologia bíblica deu uma guinada de ceticismo radical. Verdades dolorosas começaram a ser ventiladas sobre o que acontecera de verdade entre judeus e palestinos em 1948. Impôs-se a realidade da ocupação prolongada e, depois, a da primeira intifada. Ficou impossível conversar com não judeus sobre a história judaica sem que o tema fosse afogado pelo conflito árabe-israelense. A fumaça dos crematórios, compreensivelmente, ainda estendia seu manto trágico sobre todo o resto. Por sua monstruosidade, a magnitude sem paralelo daquela catástrofe parecia exigir silêncio, por parte de judeus e gentios. No entanto, o silêncio não é uma opção para o historiador, qualquer que seja o custo de quebrá-lo. Entendi que, ao escrever uma história pós-medieval para o público não especializado, uma história que desse pleno peso à experiência geral, uma história feita não só de narrativas de perseguições e massacres, eu poderia atuar como um interlocutor, persuadindo os leitores (e os redatores de verbetes de história de que nenhuma história, qualquer que seja seu foco principal, estará completa sem a história dos judeus, feita de muito mais do que pogroms e comentários rabínicos, uma crônica povoada de vítimas antigas e conquistadores modernos. Esse era o instinto com que eu tinha sido criado. Meu pai era obcecado, em igual medida, pela história judaica e pela britânica, e agia como se as duas fossem uma só. Manobrando o leme de umbarquinho no Tâmisa a resfolegar entre Datchet e Old Windsor, com morangos, bolinhos e um vidro de geleia numa cesta, ele ora falava de Disraeli como se o tivesse conhecido pessoalmente (“Batizado? Que diferença fez isso?”) e no instante seguinte discorria sobre o falso messias Shabbetai Zevi, do século XVII, cujo embuste meu pai (e os Schama ancestrais) tinham obviamente percebido (“Que momser! [canalha]”). Ou quem teria entendido direito os judeus? Walter Scott ou George Eliot? O Dickens caricaturista de Oliver Twist ou o Dickens sentimental de Our Mutual Friend [Nosso amigo comum]? Parávamos sob os salgueiros para discutir a questão do sofrimento de Shylock. Foi também de meus pais que herdei a ideia de que o Velho Testamento fora o primeiro compêndio de história, de que, apesar dos excessos poéticos dos milagres, ele era o pergaminho que enfeixava escravizações e libertações, arrogâncias de reis e rebeliões filiais, cercos e aniquilações, legislações e transgressões da lei: o molde que daria forma a todas as histórias subsequentes.
Se meu pai tivesse escrito essa história, ela se chamaria “De Moisés à Carta Magna”. Mas ele não a escreveu. Nem eu, não em 1973. Tentei dar prosseguimento à narrativa de Cecil Roth, mas por esta ou aquela razão o enxerto não pegava. E então começaram meus quarenta anos de perambulação, não exatamente pelo deserto, mas por áreas que nada tinham a ver com minha origem judaica, pela Holanda e pela Carolina do Sul, por Skara Brae e pela Paris jacobina. No entanto, durante todo esse tempo, as linhas da história que eu poderia ter contado mantiveram-se vagamente presentes em meus pensamentos e lembranças, como parentes que me puxassem pela manga, com gentileza mas insistência, em casamentos ou funerais da família (o que às vezes eles de fato faziam). Nunca subestime o poder de uma tia judia, e muito menos a censura silenciosa e paciente de uma mãe judia. Assim, em 2009, quando Adam Kemp, da BBC, marcou uma reunião para falar da ideia de uma nova série de documentários de televisão “que você vai amar ou odiar”, de alguma forma eu sabia, antes que ele abrisse a boca, do que se tratava. Houve, admito, um momento fugaz de Jonas. Uma voz dentro de mim dizia: “Fuja para Jope, reserve lugar no primeiro navio que partir para Társis”. Contudo, de que isso lhe valera? Desse modo, assumi o projeto abandonado havia tantas décadas, com todas as nuanças de gratidão e temor. Dessa vez, a história contaria com o poder persuasivo da televisão, e, utilizando os dois meios — o texto e a imagem — que estão ligados organicamente, mas não são idênticos, tive a esperança de, enfim, conseguir construir aquela ponte entre o público judeu e o não judeu, que parecia ter fugido de mim quarenta anos antes. Apesar das desmesuradas dificuldades (três milênios de história em cinco horas de televisão e dois livros), essa empreitada foi, e ainda é, um trabalho apaixonante. Embora eu não esteja à altura de narrar essa história, faço isso exultante, mesmo porque as fontes — as visuais e as textuais —passaram por enorme transformação nos últimos decênios. Descobertas arqueológicas, sobretudo inscrições do período bíblico, conferiram uma nova ideia de como surgiu aquele texto, que se tornaria herança de grande parte do mundo.
De uma ponta a outra do mundo judaico encontraram-se mosaicos que alteraram radicalmente não só nossa ideia de como eram uma sinagoga e o culto judeu como também o quanto aquela religião tinha elementos em comum com o paganismo e o cristianismo primitivo. Sem incluir à força piedades agradáveis na narrativa, nem minimizar as muitas aflições que marcaram de lágrimas esse relato, a história que se desenrola narra tanto o heroísmo da vida cotidiana quanto o das grandes tragédias. Este livro e os episódios da série de televisão estão cheios das pequenas revelações que resultam numa cultura, o prosaico junto com o poético: um desenho rabiscado no caderno escolar de uma criança procedente do Cairo medieval; uma batalha entre gatos e ratos numa Bíblia espanhola suntuosamente ilustrada; o dote, de uma pobreza comovente, de uma escrava egípcia do século V a.C. que se casou com um servidor do templo judeu de uma cidade do interior; a irritação de um suboficial, membro da guarnição de um forte no alto de uma colina, que aguardava com ansiedade e impaciência a aproximação dos babilônios; os versos melancólicos de uma bênção sacerdotal gravados em hebraico arcaico num minúsculo amuleto de prata datado da época do rei Josias. Isso é o trivial do dia a dia. No entanto, a história dos judeus foi tudo menos corriqueira. O que os judeus vivenciaram, e de alguma forma sobreviveu para contar a história, foi a versão mais intensa, conhecida pela humanidade, de adversidades sofridas também por outros povos; de uma cultura que resistiu sempre ao aniquilamento, refazendo lares e habitats, escrevendo a prosa e a poesia da vida através de uma sucessão de expulsões e agressões. É isso que torna essa história a um tempo particular e universal, a herança comum de judeus e não judeus, uma narrativa de nossa humanidade comum. Em todo o seu esplendor e atribulações, nas repetidas desditas e na criatividade infinita, a narrativa apresentada nas páginas seguintes constitui, em muitos sentidos, uma das grandes maravilhas do mundo. PARTE I PAPIRO, CACOS DE CERÂMICA, PERGAMINHO 1. No Egito No princípio — não o princípio imaginado de patriarcas e profetas, e decerto não o princípio de todo o universo, apenas o princípio documentado dos judeus comuns —, nesse princípio, um pai e uma mãe estavam preocupados com seu filho. Esse filho, um jovem soldado, chamava-se Shelomam, a versão aramaica de meu nome hebraico, Shelomo. Seu pai chamava-se Osea, o segundo nome de meu próprio aba. 1 Isso foi há 2500 anos, em475 a.
C., décimo ano do reinado de Xerxes, rei da Pérsia aquemênida, que, embora com o poder muito debilitado na Grécia, ainda governava o Egito, onde viviam Shelomam e Osea. Xerxes ainda teria outra década no trono antes de ser morto por seu ministro de maior confiança, Artabano da Hircânia, que cometeu o crime com a ajuda de um eunuco. Jesus de Nazaré só nasceria meio milênio depois. A darmos crédito aos diversos autores da Bíblia hebraica, oitocentos anos tinham se passado desde que Moisés levara os israelitas, até então escravizados no Egito, para as montanhas do deserto, onde, de posse das leis dadas diretamente por Iahweh — na verdade, escritas por Seu próprio dedo —, eles se transformaram, a despeito de repetidas experiências com a idolatria e umardente desejo de outros deuses, em alguma coisa parecida com judeus. Os autores bíblicos apresentaram o êxodo do vale do Nilo, o fim da escravidão no estrangeiro, como o processo no qual os judeus se tornaram plenamente israelitas. Viram a jornada como uma ascensão, tanto topográfica quanto moral. Foi em cumes altos e pedregosos, paradas no caminho para o céu, que YHWH — como grafavam Iahweh — havia Se mostrado (ou pelo menos mostrara Suas costas), fazendo o rosto de Moisés queimar e resplandecer com a radiação refletida. Desde o princípio (seja na versão bíblica, seja na arqueológica), os judeus se formaram em regiões acidentadas. Em hebraico, o ato de imigrar para Israel ainda é chamado de aliyá, uma subida. Jerusalém era inimaginável na planície fluvial baixa. Tentações turvavam os rios; o mar era ainda pior, infestado de monstros escamosos. Aqueles que viviam em suas margens ou singravam suas ondas, como os fenícios ou os gregos, eram tidos como inconstantes, idólatras e impuros. Desse modo, aos olhos daqueles para quem o êxodo era o começo adequado de tudo o que era judeu, voltar para o Egito seria uma queda, uma descida à despudorada idolatria. Os profetas Ezequiel e Jeremias — embora este último tenha ido ele próprio para o Egito — tinham advertido contra essa recaída, esse desjudiamento.
Aqueles que sucumbissem a esse desejo, advertiu Jeremias, se tornariam “uma maldição, um objeto de espanto, de escárnio e de vergonha” (Jeremias 29,18). Sem lhe dar ouvidos, os israelitas desobedeceram, não pela primeira nem pela última vez, retornando ao Egito aos magotes. Por que não, se o reino de Israel, no norte, tinha sido destroçado pelos assírios em 721 a.C., e um século depois o reino de Judá foi também pulverizado pelos babilônios? Os autores das narrativas bíblicas podiam interpretar todas essas desgraças como castigos de YHWH pela apostasia, e assim fizeram. No entanto, os castigados podiam ser perdoados por pensar: muitas graças Ele nos concedeu. Por ocasião do Pessach (a Páscoa judaica, celebração do êxodo do Egito), o rei Josias sacrificou cerca de 30 mil cordeiros e ovelhas no Templo; rasgaram-se roupas em massa, em penitência contrita pelo fato de seus donos terem se interessado por falsos deuses; nenhuma ajuda receberam para escorraçar os invasores infernais que vinham da Mesopotâmia com suas cabeleiras, panteras e incontáveis fileiras de arqueiros e lanceiros. Assim, os israelitas desceram de seus montes fulvos na Judeia para a área inundada no Egito, para Táfnis, no delta, e para Mênfis, mais abaixo, e sobretudo para Patros, no sul. Quando os persas chegaram, em 525 a.C., trataram os israelitas não como escravos, mas como proprietários de escravos e, acima de tudo, como duros soldados profissionais, nos quais se podia confiar, tanto quanto nos arameus, cáspios e cários, gregos da costa ocidental da Anatólia, para reprimir os levantes egípcios contra a Pérsia. Também policiariam a turbulenta fronteira sul, onde começava a África núbia. Shelomam, o filho de Osea, era um desses jovens, um mercenário (era um meio de ganhar a vida) que estava servindo na guarnição da Hayla hayahudaya, a Tropa da Judeia, na ilha de Elefantina, pouco depois da primeira catarata no Nilo. Talvez, naquele momento, tivesse sido destacado para participar das escoltas de caravanas, protegendo os tributos em marfim, mogno e moços etíopes que antes eram pagos pela Núbia ao faraó e agora eram enviados ao governador persa que lhe sucedera. O pai, Osea, escrevia de Migdol, provavelmente na parte oriental do delta do Nilo, onde Shelomam servira antes.
Sua carta, remetida para um lugar a oitocentos quilômetros de distância no sul, a fim de esperar a chegada do soldado em Elefantina, estava escrita em aramaico, a língua franca da região e de todo o império, na superfície alisada de um papiro. Embora essas folhas estivessemunidas, o papiro se degrada muito lentamente. Se protegido da luz, a tinta permanece escura e nítida. Os caracteres quadráticos, no mesmo estilo elegante em que o hebraico seria grafado desde a época do Segundo Templo até nossos dias, ainda são claramente legíveis. Na memória judaica, é como se Osea houvesse escrito ontem. Um pai preocupado é um pai preocupado. Ele não consegue evitar que o rapaz saiba desde o primeiro momento como ele se sente, no começo da carta: “Desejo-lhe saúde e força, mas desde o dia em que você seguiu seu caminho, meu coração não está tão bem”. E a seguir, o argumento conclusivo, as palavras que Shelomam com certeza sabia que viriam, mesmo se Osea não as tivesse escrito, a frase que todos os rapazes judeus escutam em algum momento, a frase a partir da qual a história se desenrola: “Sua mãe, a mesma coisa”. Um golpe preventivo clássico. Meu próprio pai, Arthur Osea, recorria a ele descaradamente se, como no caso do Osea egípcio, estivesse ansioso, temendo que a notícia que viria em seguida não deixasse o filho plenamente feliz. “Não se preocupe […] sua mãe está um tanto aborrecida com isso, mas […].” O que poderia deixar sua alegria e seu orgulho, seu Shelomam, preocupado? Problemas com o soldo e os pertences pessoais? Ah, não se irrite. “Aquela túnica e a roupa sobre as quais você escreveu estão prontas, sabe? Não se zangue comigo porque não pude levá-las a Mênfis a tempo (para a sua viagem ao sul). Vou levá-las, para que você possa encontrá-las ao retornar.” O soldo? É, bem, temos um probleminha aqui, meu filho.
“Quando você saiu de Migdol, eles não quiseram nos mandar seu dinheiro.” E pior, quando Osea procurou saber dos pagamentos atrasados, foi tratado com as desculpas convencionais reservadas aos zés-ninguém dos impérios. Sinto muitíssimo, na verdade isso não é meu departamento, sabe, mas, por favor, não deixe de apresentar sua queixa às autoridades competentes. “Quando você voltar para o Egito, diga-lhes suas razões e eles hão de lhe pagar.” Portanto, ouça, meu filho, continua Osea, tentando afastar qualquer ideia de que ele tinha deixado de atender ao rapaz com relação ao assunto crucial dos pertences: “Não chore. Seja homem[…]. Sua mãe, as crianças, todos vão bem”. Seria bom sabermos com mais pormenores como Shelomam vivia no mundo fronteiriço dos soldados judeus em Elefantina, mas a carta ficou ali, de modo que talvez ele nunca tenha chegado à ilha, nunca tenha recebido sua túnica ou seu soldo. Ou talvez tenha recebido, mas largou a carta lá. Seja como for, ela permaneceu ali durante dois milênios e meio, até 1893, quando um americano, Charles Edwin Wilbour, egiptólogo amador e ex-jornalista do New York Herald Tribune , comprou vasos de cerâmica cheios de papiros de mulheres que escavavam os montículos da ilha em busca de sebagh, um fertilizante. “Todos esses pap. de Kom me foram mostrados por três mulheres em diferentes datas”, anotou Wilbour em seu diário. Mas assim que viu que os papiros estavam escritos em aramaico e datavam da XXVII dinastia, ele se desinteressou. Seu hobby eram antiguidades mais relevantes, mais antigas, faraônicas. Vinte anos antes, ele deixara Manhattan às pressas, quando um grande amigo seu, o rei das propinas, William M.
Tweed, vulgo “Boss” Tweed, que conseguira alguns rendosos contratos para a fábrica de papel de Wilbour, fora expulso da cidade. Em Paris, Wilbour ganhou vida nova com o Egito Antigo, cuja estupenda história ele aprendera com o famoso intelectual Gaston Maspero. O americano aparelhou um dahabiyeh, de modo que ele e a mulher, Charlotte Beebee, ardorosa sufragista, pudessem navegar pelo Nilo com todo o conforto, parando de vez em quando para ajudar em escavações em Karnak, Luxor e Tebas. Eminentes egiptólogos alemães, franceses e britânicos achavam seu entusiasmo ianque divertido, às vezes até útil. De vez em quando, Wilbour via Flinders Petrie em sua barraca tosca e julgava que o arqueólogo britânico fazia questão de mostrar-se espartano pelo fato de acampar como um árabe. Ostentando uma barba de profeta, Wilbour fez do Nilo sua sala durante duas décadas. Quando, perto do fim desse período, ele subia nos montículos de Elefantina, no meio das mulheres que cavoucavam a terra, ele sabia que o sebagh que elas procuravam para suas plantações eram os restos pulverizados de antigos tijolos de barro, aos quais se juntaram feno e restolhos suficientes para lhe conferir efeitos fertilizantes. Mas com certeza não lhe ocorreu que em algum ponto sob seus pés havia uma cidade judaica decomposta, a primeira que podemos reconstruir para sentir a agitação de suas atividades cotidianas: seus litígios em torno da propriedade de cômodos e casas, suas entradas e saídas; seus casamentos e divórcios; seus testamentos e contratos nupciais; seus alimentos e seu vestuário; seus juramentos e suas bênçãos. Desatento a tudo isso, Wilbour levou os papiros, bem dobrados e reunidos, com os nomes dos destinatários no exterior, tal como tinham sido escritos nos séculos V e IV a.C., para sua residência em Paris, onde ele expirou em 1896. Dez anos depois, coleções maiores foram descobertas por expedições alemãs, que examinaram seu conteúdo, levaram-nas para Berlim e Paris e publicaram um pouco mais do que tinha sido dado a público antes. É desnecessário dizer que os britânicos, que de capacete de fibra na cabeça tinhamfeito do Egito seu domínio, não estavam muito atrás. Papiros e cacos de cerâmica com inscrições (os chamados óstracos) acabavam devidamente em seus destinos habituais, Oxford e o Museu Britânico, e quando os procônsules da arqueologia queriam se mostrar especialmente magnânimos, no Cairo. Alguns papiros foram publicados no começo do século XX, mas só quando os tesouros de papiros passaram para o Museu do Brooklyn foi que a cortina de fato se abriu, revelando a maravilha que foi a Elefantina judaica.
Fragmentos de cartas e inscrições em cacos de cerâmica, no hebraico linear clássico (entre dois e três séculos mais antigos que os papiros de Elefantina) ainda sobrevivem — são gritos e lamentos da Judeia, meio perdidos na ventania do tempo: um trabalhador rural cujo traje foi confiscado por umcredor sem escrúpulos; um oficial de intendência que, sitiado, enfrentava o avanço da horda de babilônios e necessitava com urgência de óleo e cereais; um oficial de baixa patente em outra cidadela, buscando em vão os fogos de advertência que deveriam vir de fortes situados em colinas próximas.
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