A Procura da Felicidade – Chris Gardner

Sempre que me perguntam o que foi exatamente que me guiou pelos dias mais sombrios de minha vida, não apenas para sobreviver, mas também para superar aquelas circunstâncias e, no fim, atingir um patamar de sucesso e satisfação pessoal que parecia impossível, dois momentos me vêm à mente. Um deles aconteceu no início da década de 1980, em uma manhã ensolarada, na região da Bay Area, a Baía de San Francisco, quando eu tinha vinte e sete anos. No estacionamento absolutamente lotado do Hospital Geral de San Francisco, quando eu estava saindo do edifício, um raio forte de sol bloqueou minha visão por um instante. Quando consegui restabelecer o foco, o que vi mudou o modo como eu via o mundo. Em outro momento qualquer de minha vida isso não teria me causado um impacto tão profundo, mas naquele momento e naquela maravilhosa Ferrari 308, vermelha, conversível, circulando vagarosamente pelo estacionamento – dirigida por um sujeito que obviamente procurava uma vaga – havia alguma coisa que me compeliu a ter com ele uma conversa que mudaria totalmente os rumos de minha vida. Alguns anos antes, recém-saído da Marinha, eu havia chegado a San Francisco – atraído à Costa Oeste por um prestigioso emprego na área de pesquisa e pela oportunidade de trabalhar para um dos mais famosos jovens cirurgiões cardíacos do país. Para um garoto como eu, que mal havia posto os pés fora do quadrado de seis quarteirões do bairro em Milwaukee – sem contar o período de três anos como paramédico da Marinha na Carolina do Norte –, San Francisco era tudo aquilo com que eu sonhava. A cidade era a Terra do Leite e do Mel e a Cidade Esmeralda de Oz – tudo reunido em um só local. Emergindo da baía em meio a neblinas douradas de possibilidades, ela me seduziu desde o início, exibindo suas muitas colinas e grandes vales, oferecendo-se de braços abertos ao visitante. À noite, era afrodisíaca – suas luzes, como joias raras, cintilavam de Nob Hill e Pacific Heights, passando pelos melhores bairros e ao longo das ruas mais rústicas de Mission e de Tenderloin (meu novo bairro), sem contar as torres do Distrito Financeiro, cujo brilho se refletia na baía perto de Fisherman’s Wharf e da Marina. Nos primeiros dias, não importa quantas vezes fui de carro a oeste, atravessando a ponte Bay Bridge, vindo de Oakland, ou a norte, vindo da cidade de Daly City, passando pela ponte Golden Gate, que se estende até o horizonte antes de entrar no Condado de Marin, aquelas paisagens de San Francisco eram como ficar apaixonado novamente. Mesmo com o passar do tempo e já tendo me acostumado com o clima – os períodos de céu cinzento com neblina alternados com dias de chuva de gelar os ossos –, eu acordava e desfrutava de um daqueles dias gloriosos e perfeitos de San Francisco, cuja beleza apagava todas as minhas lembranças tristes. Até hoje, San Francisco permanece em minha mente como a Paris do Pacífico. É claro que nessa época não demorou muito para que eu descobrisse que ela também era ilusória, não necessariamente fácil, algumas vezes fria, e, definitivamente, longe de ser uma cidade barata. Entre os aluguéis altíssimos e os crônicos consertos de freio e embreagem do carro, causados pelas colinas íngremes que exigiam muito do motor – para não falar daquela pilha de multas de estacionamento não pagas, tão familiares à maioria dos que vivem em San Francisco – ficar com dinheiro no bolso era sempre um desafio.


Mas isso não iria prejudicar minha crença de que eu venceria. Além do mais, eu sabia bastante sobre desafios. Sabia como dar duro e, de fato, nos anos que se seguiram, os desafios me ajudaram a reformular meus sonhos, a buscar mais longe, e perseguir metas com um sentido de premência muito maior. No início de 1981, quando fui pai pela primeira vez, fiquei tão fascinado que aquele sentido de premência me empurrou para um patamar acima. À medida que meu filho vivia seus primeiros meses, não apenas tentei seguir adiante mais rápido, como também comecei a duvidar do caminho que havia escolhido – se, de alguma forma, em todo o meu esforço, eu não estava tentando subir a escada rolante que descia. Ou, pelo menos, esse era meu estado de espírito naquele dia no estacionamento do Hospital Geral de San Francisco, quando me aproximei do motorista da Ferrari vermelha. Esse encontro iria se cristalizar em minha memória – quase se transformando em um momento mítico ao qual eu poderia voltar e que eu poderia visitar no presente do indicativo, sempre que o desejasse ou precisasse da mensagem que ele me trazia. Vejo o carro esporte diante de mim exatamente como se fosse hoje, rodando em câmera lenta, o motor inacreditavelmente possante zunindo, enquanto espera ociosamente e ronca baixinho, como um leão se preparando para o ataque. Em minha mente, ouço aquele som incrível do trompete de Miles Davis, meu herói musical; naquela época, eu tinha certeza de que iria ser como ele quando crescesse. Essa é uma daquelas sensações imaginadas na trilha sonora de nossas vidas que nos dizem para prestar atenção. Com a capota do carro abaixada – o vermelho metálico do capô brilhando, o que me faz lembrar um carro do Corpo de Bombeiros –, o sujeito ao volante é tão interessante como os músicos de jazz que eu costumava idolatrar. Branco, cabelos escuros, barba bem-feita, altura mediana e corpo esguio, ele está usando um terno muito moderno e elegante, provavelmente feito sob medida e com um belo tecido. É mais que uma peça de vestuário maravilhosa; é o todo – a gravata de muito bom gosto, a camisa sóbria, o lenço no bolso, as discretas abotoaduras e o relógio. Não há nada a deplorar; tudo combina muito bem. Nenhuma frescura.

Nenhuma bobeira. Tudo absolutamente de acordo. − Ei, cara – eu lhe disse, aproximando-me da Ferrari e acenando para ele, conforme lhe indicava onde havia estacionado meu carro e mostrando-lhe, com um movimento de cabeça, que eu já estava saindo. Será que é a Ferrari que está me seduzindo? Sim. Sou um macho americano de sangue vermelho. Mas é mais que isso. Nesse instante, o carro simboliza tudo aquilo que me faltou quando eu era criança: liberdade, escapismo, opções. − Pode pegar a minha vaga − disse a ele −, mas antes preciso te fazer algumas perguntas. Ele pensa que estou lhe propondo um negócio – minha vaga em troca de informação. Em meus vinte e sete anos de vida até então, já aprendi um pouco a respeito do poder da informação e do tipo de moeda que ela pode valer. Vejo agora uma chance de conseguir alguma informação, penso eu, de quem está por dentro; então saco minha fiel espada – uma compulsão por fazer perguntas que tem sido meu kit de sobrevivência desde a infância. Ao perceber que não é um mau negócio para nenhum de nós, ele dá de ombros e diz: − Tudo bem. Minhas perguntas são muito simples: − O que você faz? Como você faz? Dando uma risada, ele responde à primeira pergunta também de maneira muito simples: − Sou corretor. Mas para responder à segunda, combinamos um encontro algumas semanas depois, para uma iniciação no ABC da Wall Street, um local completamente estranho, porém fascinante, onde só um louco como eu poderia pensar em fazer o que ele e outros como ele fazem, se eu conseguisse encontrar um espaço. Apesar de não ter absolutamente nenhuma experiência e absolutamente nenhum contato no meio, tentar conseguir minha grande chance no mercado de ações tornou-se o meu foco principal nos meses subsequentes, mas o mesmo aconteceu com outros assuntos que exigiam solução imediata, sobretudo quando, de repente, me tornei pai solteiro no meio de uma série de outros acontecimentos imprevistos e tumultuosos.

Nessa época, as atitudes conflitantes em San Francisco com relação à crescente população de moradores de rua já eram bem conhecidas. O que as autoridades diziam ser uma nova epidemia de moradores de rua já vinha, na verdade, se desenvolvendo há mais de uma década, por obra de vários fatores – incluindo cortes drásticos no orçamento do estado para custeio de instituições psiquiátricas, opções de tratamento limitadas para o grande número de veteranos do Vietnã, que sofriam de síndrome de estresse pós-traumático e haviam se tornado viciados em álcool e drogas, juntamente com as mesmas doenças urbanas que afetavam o restante do país. No decorrer do longo e rigoroso inverno de 1982, conforme os programas governamentais de assistência aos pobres eram eliminados, a economia na Bay Area, como no restante do país, estava em declínio. Em um período no qual emprego e moradia a preços acessíveis estavam cada vez mais difíceis de se encontrar, obter drogas baratas nas ruas, como pó de anjo e PCP, começava a se tornar mais fácil. Embora alguns líderes executivos se queixassem de que os moradores de rua poderiam afugentar os turistas, se você por acaso visitasse San Francisco no início da década de 1980, muito provavelmente, não perceberia a crise que se aprofundava. Talvez tivesse sido advertido sobre quais bairros evitar – áreas onde poderia encontrar bêbados, drogados, prostitutas, mulheres sem-teto carregando suas trouxas, gente em trânsito e outros que, conforme se dizia no meu bairro em Milwaukee, “eram simplesmente malucos”. Ou talvez você tivesse notado realmente alguns dos sinais – as longas filas para um prato de comida, o crescente número de pedintes, as mães com os filhos nos degraus de abrigos com capacidade excedida, adolescentes que haviam fugido de casa, ou aquelas formas humanas adormecidas que, às vezes, pareciam mais pilhas de roupas amontoadas, descartadas nos becos, em bancos de parques, em estações de baldeação, ou debaixo de marquises e entradas de edifícios. Talvez sua visita a San Francisco lhe trouxesse à lembrança problemas semelhantes aos de sua cidade natal, ou talvez até mesmo o alertasse quanto ao crescente percentual de trabalhadores pobres que haviam entrado para as estatísticas dos sem-teto – legalmente empregados, mas indivíduos e famílias sobrecarregados, forçados a escolher entre pagar o aluguel e comprar comida, remédio, vestuário ou outras necessidades básicas. Talvez você tenha parado para pensar que tipo de vidas, de sonhos e de histórias já foram vivenciadas antes, e, quem sabe, considerar como seria fácil para qualquer um cair nas brechas de seja lá que estrutura for que porventura tivesse existido, ou enfrentar uma crise súbita de qualquer proporção, e simplesmente tropeçar no fosso do viver sem moradia. Entretanto, há alguma chance de que, mesmo que seja um bom observador, você não tenha notado minha presença. Ou, se me viu, andando bem depressa e empurrando um frágil carrinho de bebê azul, meu único veículo e dentro do qual eu carregava a carga mais preciosa do universo – meu filho de dezenove meses, Chris Jr., uma criança linda, esperta, alerta, tagarela e esfomeada –, é pouco provável que você tenha suspeitado que éramos moradores de rua. Usando um dos meus dois ternos, o outro na sacola de roupas que eu carregava nos ombros, junto com a mochila, cheia de pertences mundanos (incluindo diferentes peças de roupa, objetos de higiene pessoal e poucos livros sem os quais eu não poderia viver), tentando segurar um guarda-chuva em uma das mãos, uma pasta na outra, e equilibrar debaixo do braço a maior caixa de fraldas Pampers do mundo e, ainda, manobrar o carrinho, provavelmente parecíamos mais como se estivéssemos saindo para um longo final de semana fora de casa. Alguns dos lugares onde dormíamos davam a entender que era isso mesmo – as estações de metrô da Bay Area Rapid Transit, as salas de espera dos aeroportos de San Francisco ou de Oakland. E há também que levar em conta os “esconderijos” onde ficávamos, que poderiam trair minha situação: no escritório, onde eu ficava trabalhando até mais tarde para que pudéssemos nos deitar no assoalho debaixo de minha mesa ou, como de vez em quando acontecia, no banheiro público da estação BART, em Oakland.

Aquele box pequeno, parecido com uma cela, sem janelas, azulejado – grande o suficiente para nós dois, nossa tralha, e um vaso e uma pia, onde tentávamos fazer nossa higiene pessoal da melhor maneira possível – representava, ao mesmo tempo, meu pior pesadelo de estar confinado, trancado e excluído, e uma dádiva de Deus, uma proteção; eu podia trancar a porta e deixar os perigos lá fora. Era o que era – uma estação de passagem entre o lugar de onde eu vinha e o lugar para onde eu ia, minha versão de um pit stop na ferrovia subterrânea, bem ao estilo dos anos de 1980. Enquanto mantinha meu foco em metas que estavam adiante, metas com que tive a ousadia de sonhar e que incluíam uma Ferrari vermelha só minha, eu me protegia do desespero. O futuro era absolutamente incerto e havia muitos obstáculos, voltas e reviravoltas à minha espera, mas à medida que eu seguia em frente, passo após passo, as vozes do medo e da vergonha, as mensagens daqueles que queriam me fazer acreditar que eu não era bom o suficiente, se calavam. Siga em frente. Esse era meu mantra, inspirado pelo reverendo Cecil Williams, um dos homens mais iluminados que já passaram por esse mundo, um amigo e mentor cuja bondade me abençoou de uma maneira que jamais terei condições de descrever com justeza. Na Igreja Metodista Glide Memorial, no bairro Tenderloin – onde o Reverendo alimentava, abrigava e reparava almas (e onde acomodou milhares de sem-teto, que se tornou o primeiro hotel dos sem-teto no país) – ele já era um ícone. Naquela época, e mais tarde, era impensável viver na Bay Area e não ter ouvido falar de Cecil Williams e captar sua mensagem. “Pratique aquilo que você fala”, ele pregava. Aos domingos, seu sermão poderia ser sobre vários assuntos, mas aquele tema estava sempre lá, além dos outros. Pratique aquilo que você fala e siga sempre em frente. Não fique apenas no discurso, pratique-o e siga em frente. E para caminhar, não havia necessidade de dar passos grandes; passos de bebê também contavam. Siga em frente. Essas frases martelaram em meu cérebro até formarem um jogo de skat sem palavras, como um staccato de três batidas, à medida que viajávamos no trem da BART, ou como o ritmo sincopado do clac-clac-clac das rodas do carrinho junto com a percussão dos ocasionais rangidos, chiados e gemidos que elas faziam, morro acima e morro abaixo, nas calçadas íngremes das ruas de San Francisco, e ao virar as esquinas.

Anos mais tarde, os carrinhos de bebê se tornariam muitíssimo high-tech, com rodas duplas ou triplas de cada lado, aerodinâmicos, alinhados, estofamento de couro e compartimentos extras para guardar coisas, e teto encaixáveis para torná-los parecidos com iglus habitáveis. Mas o meu precário carrinho azul, à medida que avançávamos no inverno de 1982, não tinha nada disso. O que ele realmente tinha – no decorrer do que, tenho certeza, foi o mais úmido e frio inverno de que se tem notícia em San Francisco – era uma espécie de toldo, que eu mesmo fiz, usando plástico que consegui de graça das lavanderias; era assim que eu protegia Chris Jr. Embora eu continuasse seguindo em frente, porque acreditava que um futuro melhor nos aguardava, e por mais certo que estivesse de que o encontro no Hospital Geral de San Francisco havia me colocado na direção desse futuro, a força verdadeira que me impelia para lá veio de outro evento crucial em minha vida – que aconteceu antes, em Milwaukee, em março de 1970, pouco tempo depois que completei dezesseis anos. De maneira diferente de muitas experiências de infância que teimavam em se misturar em minha memória, formando uma série de imagens que bruxuleavam indistintas como aqueles filmes antigos, esse acontecimento − que deve ter durado pouco mais do que um décimo de segundo – tornou-se uma realidade vívida que eu podia evocar sempre que quisesse, em todos os seus mínimos e perfeitos detalhes. Esse foi um dos períodos mais instáveis de minha vida, muito mais instável do que a turbulência pública da época – a Guerra do Vietnã, o movimento pelos direitos civis, os ecos dos assassinatos políticos e das agitações públicas, e a influência cultural da música, dos hippies, do black power, do ativismo político. Tudo isso combinado colaborou para moldar minha percepção de mim mesmo, de meu país e do mundo. Durante minha infância e adolescência, eu e minha família − que consistia em minhas três irmãs, nossa mãe, que esteve presente apenas esporadicamente em minha primeira infância, e nosso padrasto – moramos em diferentes casas, pequenos prédios sem elevador e apartamentos, o que era interrompido por separações intermitentes, quando íamos morar com uma série de parentes, todos vivendo dentro de uma área de quatro quarteirões. Finalmente, mudamos para uma pequena casa em um bairro considerado socialmente um pouco superior, em comparação com o lugar onde vivíamos antes. Contudo, essa casa era, de qualquer forma, um sinal de ascensão – à moda da família Jefferson, para quem ainda faltavam cinco anos até que conseguissem seu próprio show na TV. Nesse dia especial, a TV foi o foco de minha atenção e a chave para meu bom humor cheio de expectativas, não apenas porque eu estava me preparando para assistir às quartas de final da NCAA, mas porque tinha a sala de estar todinha só para mim. Isso significava que eu podia torcer e gritar o quanto quisesse e, se tivesse vontade, podia também falar e responder a mim mesmo imediatamente. Minha mãe tinha o mesmo hábito. Quando perguntavam a ela o que estava fazendo, ela respondia: “Conversando com alguém que tem bom senso”. O fato de minha mãe ser a única pessoa em casa, além de mim, naquele dia era outra razão por que eu me sentia bem.

Mesmo que ela não estivesse sentada ao meu lado para ver o jogo, e sim ali por perto – ocupada, passando roupa na sala de jantar ao lado, como sempre acontecia – era como se a casa estivesse suspirando de alívio pelo fato de apenas nós dois estarmos lá, algo que quase nunca ocorria, considerando, sobretudo, a presença ameaçadora de meu padrasto. A Loucura de Março, que vinha todo ano ao final da temporada de basquete na faculdade, além de emocionante para mim, era uma excelente válvula de escape de quaisquer pensamentos mais sombrios que eu tinha acerca da corda bamba em que andava me equilibrando no final da adolescência até atingir a idade adulta. O torneio era sempre cheio de surpresas, histórias de Cinderela e drama humano, começando com os 64 melhores times do país em 32 jogos, que rapidamente se reduziam aos Doce Dezesseis, depois aos Oito de Elite, e acabavam com os dois jogos das quartas de final, antes de os vencedores disputarem o título de campeão. Todos os olhares naquele ano estavam voltados para a UCLA e imaginando como eles se sairiam em sua primeira temporada sem Lew Alcindor (que logo passou a se chamar Kareem Abdul-Jabbar), jogador de mais de dois metros, depois de ele ter levado o time a três títulos consecutivos. O time que parecia destinado a garantir que a UCLA não fosse para casa com o campeonato do ano era o da Jacksonville University, um programa universitário até então desconhecido que se gabava de ter não apenas uma, mas duas estrelas: Artis Gilmore e Pembrook Burrows III, ambos medindo acima de dois metros. Nessa época, não era muito comum ter jogadores tão altos, muito menos dois no mesmo time. Conhecidos como as Torres Gêmeas originais, ou algumas vezes como as Torres do Poder, Gilmore e Burrows haviam ajudado Jacksonville a aniquilar a oposição e chegar às quartas de final para enfrentar St. Bonaventure. Quando se aproximava o momento da bola parada, o entusiasmo só aumentava com as previsões dos locutores sobre a carreira e a fortuna que estavam à espera dos dois gigantes na NBA ou na ABA. O que aconteceu foi que o Jacksonville ganhou, mas, no fim, perdeu para a UCLA. Artis Gilmore iria fazer sucesso na NBA, enquanto Pembrook Burrows seria convocado pelo Seattle antes de seguir carreira como oficial de patrulha da Florida Highway. Nada disso tem muita importância quando estou sentado lá, tão envolvido esperando a bola parada e tão impressionado com o que os locutores falam da capacidade atlética e da fortuna à espera deGilmore e Burrows, que digo alto para ninguém: “Uau! Um dia esses caras vão ganhar um milhão de dólares!” Minha mãe, de pé, passando roupa na sala ao lado, bem atrás de mim, diz claramente, como se estivesse sentada ao meu lado todo o tempo: “Filho, se você quiser, um dia você pode ganhar um milhão de dólares”. Estupefato, sem responder, deixo suas palavras infiltrarem-se em mim. Não há necessidade de resposta, pois Bettye Jean Triplett, nascida Gardner, fez uma declaração de fato, que não deve ser questionada e nem precisa ser respondida. É uma coisa factual, como se, na sexta-feira, alguém dissesse que amanhã é sábado.

Aquilo foi bíblico, um dos dez mandamentos vindos diretamente de Deus para minha mãe: “Se você quiser, um dia você pode ganhar um milhão de dólares”. Instantaneamente, meu mundo virou de cabeça para baixo. Em 1970, a única maneira de um garoto do gueto como eu ter uma chance de ganhar um milhão de dólares estava em cantar, dançar, correr, saltar, pegar bolas ou traficar drogas. Cantar não era para mim. Sou ainda o único negro nos Estados Unidos que não dança e não joga bola. E foi minha mãe quem me mostrou que eu não poderia ser Miles Davis. − Chris − ela me disse depois de me ouvir falar várias vezes que eu seria Miles Davis. − Você não pode ser Miles Davis porque esse cargo já é dele. − Entendi, a partir daquele momento, que meu cargo seria o de ser Chris Gardner – não importava o que isso implicasse. Ela me disse, e eu tinha dezesseis anos e acreditava nela, que poderia ter um emprego e ganhar um milhão de dólares – se eu quisesse. Não era a quantia de dinheiro que importava quando mamãe disse aquilo; era a parte operacional de sua mensagem: se eu quisesse fazer alguma coisa, não interessava o que, eu podia fazê-la. Acreditei no que ela me disse, não só aos dezesseis anos, mas também em todos os dias que se seguiram, inclusive quando, naquele fatídico dia em San Francisco, me veio, pela primeira vez, a ideia de um futuro na Wall Street, e quando subia as colinas na chuva torrencial, e meu filho, em seu carrinho, olhando para mim através do plástico da lavanderia todo salpicado dos pingos da chuva, e quando me via em momentos tristes, refugiado em um banheiro da estação BART. Foi somente mais tarde, em minha vida adulta, após aquele período de perambulações pelo deserto dos sem-teto, acreditando na terra prometida sobre a qual minha mãe havia falado – e encontrando-a – e somente depois de gerar muitos milhões de dólares, que eu entendi por que esses dois eventos foram tão essenciais para o meu sucesso subsequente. Meu encontro com o dono da Ferrari havia me mostrado como descobrir a qual arena eu podia me candidatar e também como fazêlo. Entretanto, foi o que minha mãe havia dito antes que semeou em mim a crença de que eu poderia atingir quaisquer metas que eu me propusesse a atingir.

Só depois de examinar o mais profundamente possível a vida de minha mãe, pude compreender com mais clareza por que ela me disse aquelas palavras na época em que o fez. Compreendendo as frustrações que ela teve antes e depois de mim, pude ver que, embora muitos de seus sonhos tivessem sido destruídos, ao me desafiar a sonhar, ela estava se dando uma nova chance. Para responder integralmente à pergunta sobre o que me guiou pelos caminhos da vida e tornouse o segredo do sucesso que alcancei, tive que voltar à minha própria infância e fazer uma jornada até o lugar de onde minha mãe veio – para compreender, finalmente, como aquela chama do sonho se acendeu em mim. Minha história é a história dela. PARTE 1 CAPÍTULO 1 Balinhas No esboço de minhas memórias de infância, desenhado por um artista da escola impressionista, há uma imagem que se destaca – quando invocada, é precedida do aroma de dar água na boca do melado para panqueca sendo aquecido na frigideira, e do seu crepitar e borbulhar até transformar-se magicamente em bala puxa-puxa feita em casa. Em seguida, ela surge à minha frente: aquela mulher muito, muito bonita, que está de pé ao fogão, fazendo essa mágica especialmente para mim. Ou, pelo menos, é assim que se sente um garoto de três anos. Há um outro cheiro delicioso que acompanha sua presença, conforme ela se vira, sorrindo, bem na minha direção, e se aproxima de mim no meio da cozinha– esperando ansiosamente ao lado de minha irmã, Ophelia, de sete anos, e de duas outras crianças, Rufus e Pookie, que também moram nessa casa. Quando ela faz a bala escorregar da colher de pau, puxando-a e quebrando-a em pedaços que ela traz e coloca em minha mão já estendida, e enquanto ela me observa me deleitando com aquela maravilha, sua fragrância incrível está lá novamente. Não é bem um perfume ou qualquer coisa floral ou acre – é apenas um cheirinho limpo, quente, gostoso que me envolve como a capa do Super-Homem, fazendo eu me sentir forte, especial e amado – mesmo que eu ainda não tenha palavras para expressar esses conceitos. Embora eu não saiba quem ela é, sinto nela certa familiaridade, não apenas porque ela já havia vindo anteriormente e feito balas da mesma maneira, mas também por causa do jeito como ela me olha, como se estivesse conversando comigo por meio do olhar, dizendo: “Você se lembra de mim, não?” Nesse ponto de minha infância e na maior parte dos meus primeiros cinco anos, o mapa de meu mundo era dividido em dois territórios distintos: o familiar e o desconhecido. A zona feliz e segura do familiar era muito pequena, frequentemente um ponto mutante no mapa, enquanto que a do desconhecido era vasta, apavorante e permanente. O que eu sabia, quando tinha três ou quatro anos, era que Ophelia era minha irmã mais velha e minha melhor amiga, e também que éramos tratados com gentileza pelo senhor Robinson e sua esposa, os adultos em cuja casa morávamos. O que eu não sabia era que a casa do senhor Robinson era um lar de adoção ou seja lá o que isso significava. Nossa situação – onde estavam nossos pais de verdade e por que não morávamos com eles, ou por que algumas vezes íamos morar com tios, tias e primos – era tão misteriosa quanto a situação das outras crianças adotivas que também moravam com os Robinsons.

O que realmente mais importava era que eu tinha uma irmã, que cuidava de mim, e Rufus, Pookie e os outros garotos, com quem eu saía para brincar e fazer estrepolias. Tudo o que era familiar, o quintal e o resto do quarteirão, era território seguro, onde podíamos correr e brincar de pega-pega, esconde-esconde e de chutar lata até mesmo depois que escurecia, isto é, exceto a casa que ficava duas portas depois da dos Robinson. Toda vez que passávamos lá, eu tinha quase que olhar para o outro lado, sabendo que a velha branca que ali morava poderia aparecer de repente e rogar uma praga contra mim – porque, segundo dizia Ophelia e todos os outros da vizinhança, ela era bruxa. Uma vez, quando Ophelia e eu passamos na frente da casa juntos e eu confessei a ela que estava com medo da bruxa, minha irmã disse: − Eu não tenho medo dela − e para prová-lo, entrou no jardim e apanhou bem depressa um punhado de cerejas da cerejeira da mulher. Ophelia comeu as cerejas com um sorriso nos lábios. Porém, na semana seguinte, eu estava na casa dos Robinson, quando ela me aparece, voando escada acima e tropeçando, mal conseguindo respirar e descrevendo como a bruxa a havia flagrado roubando as cerejas, e havia agarrado seu braço cacarejando: − Ainda te pego, menina! Embora estivesse apavorada, Ophelia logo decidiu que, já que havia escapado de uma morte prematura uma vez, bem que poderia voltar a roubar cerejas. Mesmo assim, ela me fez prometer que eu evitaria passar na frente da casa daquela mulher estranha: − Lembre-se − Ophelia me advertiu. − Quando você sair e a vir no alpendre, não olhe para ela e nunca fale nadinha com ela, mesmo se ela chamar você pelo nome. Eu nem precisei prometer, porque sabia que nada nem ninguém jamais me obrigariam a fazer isso. Porém, eu ainda estava atormentado com pesadelos tão reais, que poderia ter jurado que realmente entrei sorrateiramente na casa dela e me vi bem no meio de uma sala escura, amedrontadora, onde fui rodeado por um exército de gatos, apoiados em suas patas traseiras, mostrando suas garras e dentes afiados. Eram pesadelos tão intensos que, por um longuíssimo tempo, odiei gatos e tive um medo irracional deles. Ao mesmo tempo, eu não estava completamente convencido de que aquela velha era de fato uma bruxa. Talvez ela fosse apenas diferente. E já que eu não havia visto nenhuma outra pessoa de cor branca além dela, imaginei que todas podiam ser iguais a ela. Mas também há que considerar o fato de minha irmã mais velha ser meu único recurso para me explicar tudo o que era desconhecido; eu acreditava nela e aceitava todas as suas explicações.

Porém, com o passar dos anos, conforme fui juntando fragmentos de informações sobre nossa família, obtidos principalmente de Ophelia e de alguns tios e tias, descobri que era muito mais difícil compreender as respostas. Como a mulher bonita que vinha fazer as balinhas se ajustava ao quebra-cabeça, nunca me contaram, mas alguma coisa antiga e sábia dentro de mim me dizia que ela era importante. Talvez fosse pela maneira como ela parecia prestar atenção especial em mim, embora fosse igualmente gentil com Ophelia e com as outras crianças, ou talvez porque ela e eu parecíamos ter um jeito secreto de conversar sem palavras. Nessas conversas, eu entendia que ela me dizia que se sentia mais feliz quando me via feliz; assim, em algum lugar de minhas células, este se tornou meu primeiro emprego na vida: fazer tão bem a ela como ela fazia a mim. Intuitivamente, também compreendia quem ela era, embora ninguém jamais tivesse me contado; e há um momento de reconhecimento que vem de uma de suas visitas – conforme eu a observo ao fogão e faço comentários que serão reforçados nos anos seguintes. Mais que bonita, ela é linda; aquele tipo que faz você parar, olhar, olhar para trás e olhar de novo. Ela não é alta – um metro e sessenta – mas tem uma estatura que lhe dá um ar de nobreza e que a faz parecer muito mais alta. Tem a pele marrom-claro, mas não muito claro – quase da cor do denso melado que ela aquece na panela e mexe até virar bala. Suas unhas parecem sobrenaturais de tão fortes que são, capazes de partir uma maçã pela metade, sem usar mais nada, algo que me impressionou durante toda a vida e que poucas mulheres ou homens conseguem fazer. Ela tem um jeito elegante de se vestir – os vestidos vermelho-escuros ou de estampado vivo chamam a atenção –, com uma echarpe ou um xale sobre os ombros para dar um toque feminino, leve e solto. A cor radiante e as camadas esvoaçantes do tecido dão a ela uma aparência que, mais tarde, eu descreveria como afrocêntricas.

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