Ai, meu Deus, mamãe surtou. Não o surto-mamãe típico. Surtou de verdade. No surto típico, ela anuncia: “Vamos fazer essa dieta sem glúten ótima que apareceu no Daily Mail!” Então, compra três pães de forma sem glúten. É tão nojento que nossas bocas se retorcem como gosto. A família entra em greve, mamãe esconde seu sanduíche no canteiro de flores, e, na semana seguinte, deixamos de ser adeptos da dieta sem glúten. Isso é um surto típico. Agora, porém, ela está tendo um surto de verdade. Mamãe está parada perto da janela do quarto que dá vista para a rua onde moramos, Rosewood Close. Não, parada dá a impressão de ser algo muito dentro do normal. Ela não parece normal. Está se balançando toda, debruçada sobre o peitoril, com um olhar ensandecido. E segura o computador de meu irmão, Frank, equilibrando-o precariamente no parapeito. A qualquer minuto, vai espatifá-lo no chão. É um computador de 700 libras.
Será que ela tem noção disso? São 700 libras. Passa o tempo todo nos dizendo que não sabemos o valor real do dinheiro. Sempre fala coisas como “sabe como é difícil ganhar dez libras?” e “você não ia gastar eletricidade à toa se tivesse que pagar as contas”. Bem, o que diria sobre ganhar 700 libras e atirá-las propositalmente no chão? Lá embaixo, no gramado, Frank, em pânico, corre de um lado para o outro, usando a camiseta da série The Big Bang Theory, segurando a cabeça e resmungando algo ininteligível. — Mãe. — A voz transformou-se em um agudo alto por conta do medo. — Mãe, é meu computador. — Sei que é seu computador! — grita ela histericamente. — Acha que não sei disso? — Mãe, por favor, será que a gente não pode conversar? — Já tentei conversar! — replica. — Já tentei adular, brigar, suplicar, argumentar, subornar… Já tentei de tudo. DE TUDO, Frank! — Mas preciso do computador! — Não precisa do computador coisa nenhuma! — retruca ela, com tanta fúria que me encolho. — A mamã vai jogar o computador lá de cima! — diz Felix, correndo para o gramado todo feliz, sem acreditar no que vê. É nosso irmão mais novo. Tem 4 anos. Ele encara a maior parte dos acontecimentos da vida com essa alegria.
Um caminhão na rua! Ketchup! Uma batata frita mais longa que o comum! Mamãe atirando um computador pela janela é apenas mais um na lista dos milagres cotidianos. — É, e o computador vai quebrar — responde Frank, com raiva. — E você nunca mais vai poder jogar Star Wars. A expressão de Felix se transforma com a preocupação, e mamãe estremece com furor renovado. — Frank! — grita ela. — Não provoque seu irmão! Agora nossos vizinhos da frente, os McDuggan, aparecem para assistir à cena. O filho de 12 anos, Ollie, chega até a berrar “Nããão!” ao ver o que mamãe está prestes a fazer. — Sra. Turner! — O menino atravessa a rua correndo para chegar à nossa casa e olha para cima com olhar suplicante, juntando-se a Frank. Ollie às vezes joga Land of Conquerors na internet com Frank, quando meu irmão está de bomhumor e não tem mais com quem jogar. O menino parece ainda mais aterrorizado que Frank. — Por favor, não quebre o computador, Sra. Turner — suplica, trêmulo. — Todos os comentários de jogo de Frank estão salvos aí. São tão engraçados.
— Virando-se para meu irmão, repete: — São bem engraçados mesmo. — Valeu — murmura Frank. — Sua mãe parece até… — O menino pisca com nervosismo. — Parece até que recebeu umbônus e virou Deusa Guerreira Nível Sete. — Pareço o quê? — inquire mamãe. — É um elogio — responde Frank, revirando os olhos. — Coisa que você saberia se jogasse. Nível Oito — corrige ele. — Verdade — concorda Ollie rapidamente. — Oito. — Vocês não conseguem nem se comunicar em nossa língua! — rebate ela. — A vida real não é feita de níveis e fases! — Mãe, por favor — pede Frank. — Faço qualquer coisa. Coloco os pratos na lava-louças. Ligo para vovó todas as noites.
Vou… — Ele procura desesperadamente o que dizer. — Ler para os surdos. Ler para os surdos? Será que está ouvindo o que ele mesmo está dizendo? — Surdos? — Mamãe explode. — Surdos? Não preciso que leia para os surdos. Você é o surdo aqui! Nunca escuta nada do que digo… Está sempre com aquelas porcarias de fones de ouvidos… — Anne! Viro-me para ver papai se meter na discussão, e alguns vizinhos já começam a sair de casa. Este é oficialmente um Incidente da Vizinhança. — Anne! — chama ele outra vez. — Deixe que eu cuido disso, Chris — responde ela, como uma advertência, e posso ver papai engolir em seco. É um homem alto e bonito, daquele tipo que se vê nas propagandas de automóvel, e tem cara de ser a pessoa que manda na casa, mas, na intimidade, não é realmente um macho alfa. Não, isso saiu errado. É o macho alfa em muitas situações, acho. Só que mamãe é ainda mais. É forte e mandona, além de bonita e mandona. Disse mandona duas vezes, não disse? Bem. Tire suas próprias conclusões disso.
— Sei que está com raiva, querida — diz ele de forma apaziguadora. — Mas não acha isso tudo um pouco demais? — Demais? Ele que está demais! Está viciado, Chris! — Não estou viciado! — retruca Frank. — Só estou dizendo… — O quê? — Mamãe finalmente vira a cabeça e olha diretamente para papai. — O que está dizendo? — Se você atirar daí, vai acertar o carro. — Ele se retrai. — Não dá para chegar um pouco mais para a esquerda? — Não dou a mínima para o carro! Tenho pulso firme, mas é por amor! — Ela enverga o computador, deixando-o ainda menos equilibrado no parapeito, e todos prendemos a respiração, inclusive os vizinhos que acompanham a cena. — Amor? — grita Frank em resposta. — Se me amasse, não ia quebrar meu computador! — Bem, se você me amasse, Frank, não ia acordar às duas horas da manhã escondido para jogar com gente na Coreia. — Você acorda às duas da manhã? — indaga Ollie, com os olhos arregalados. — Treino. — Frank dá de ombros. — Era tudo treino — repete ele para mamãe, com mais ênfase. — Tem um campeonato chegando! Você sempre me disse que eu devia ter um objetivo na vida. Bem, eu tenho! — Jogar Land of Conquerors não é um objetivo! Ai, meu Deus, ai, meu Deus… — Mamãe bate com a cabeça no computador. — O que foi que fiz de errado? — Ah, Audrey — diz Ollie subitamente ao me ver.
— Oi, tudo bem com você? Recuo para longe da janela do meu quarto com medo. A janela fica escondida em um cantinho, e não era para ninguém me ver ali. Especialmente Ollie, que, tenho quase certeza, tem uma quedinha por mim, ainda que seja dois anos mais novo e mal alcance a altura de meu peito. — Olhe, é a celebridade! — ironiza o pai de Ollie, Rob, que vem me chamando de “a celebridade” pelas últimas quatro semanas, embora tanto mamãe quanto papai, em ocasiões diferentes, tenham lhe pedido para parar. Ele acha que é engraçado e que meus pais não têm senso de humor (noto, com frequência, que as pessoas equiparam “ter senso de humor” a “ser um idiota insensível”). Dessa vez, no entanto, acho que nem mamãe nem papai sequer ouviram a piadinha supersagaz de Rob. Mamãe ainda está gemendo “O que foi que fiz de erradooo?”, e papai a encara cheio de ansiedade. — Não fez nada de errado! — responde ele. — Não tem nada de errado! Querida, vamos lá para baixo tomar alguma coisa. Coloque esse computador no lugar… por enquanto — acrescenta apressadamente ao ver seu olhar. — Pode atirá-lo da janela mais tarde. Mamãe não se move nem um centímetro. O aparelho balança de forma ainda mais instável no peitoril, e papai se encolhe. — Querida, só estou pensando no carro… Acabamos de quitá-lo… — Ele se move em direção ao automóvel e estende as mãos, como se quisesse protegê-lo do eletrônico em queda iminente. — Pegue um lençol! — sugere Ollie, voltando à vida.
— Salve o computador! A gente precisa de um lençol. Todo mundo! Façam um círculo… Mamãe sequer parece escutá-lo. — Eu te amamentei! — grita para Frank. — Li O ursinho Pooh para você! Tudo o que queria era um filho equilibrado que se interessasse por livros e artes e a vida ao ar livre e museus e quemsabe algum esporte com competição… — LoC é um esporte com competição e tudo! — retorque Frank. — Você não sabe nada sobre o jogo! É uma parada séria! Só para você saber, o prêmio do campeonato internacional de LoC deste ano em Toronto é de 6 milhões de dólares! — É o que você vive dizendo! — explode mamãe. — E aí, vai vencer esse campeonato, é isso? Fazer fortuna assim? — Quem sabe. — Ele lhe lança um olhar sombrio. — Se eu conseguir treinar o suficiente. — Frank, cai na real! — A voz ecoa pela rua, aguda e quase assustadora. — Não vai entrar nesse campeonato internacional de LoC, não vai ganhar a porcaria do prêmio de 6 milhões e não vai viver de jogar! ISSO NÃO VAI ACONTECER! Um mês antes Tudo aconteceu por causa do Daily Mail. Muitas coisas em nossa casa acontecem por causa do Daily Mail. Mamãe começa a se contorcer daquela maneira dela. Tínhamos jantado e nos dispersado enquanto ela lia o jornal com um copo de vinho — era seu “tempinho para relaxar”, como gosta de chamar —, detendo-se em uma matéria. Posso ler o título por cima de seu ombro: OS OITO SINAIS DE QUE SEU FILHO É VICIADO EM JOGOS DE COMPUTADOR. — Ai, meu Deus.
— Eu a ouço murmurar. — Ai, meu Deus. — O dedo corre a lista, e ela respira com rapidez. Semicerrando os olhos para o papel, consigo enxergar um item: 7. Irritabilidade e mau humor. Ha. Ha. ha. Essa é minha risada sarcástica, caso você não tenha sacado. Quero dizer, sério mesmo, mau humor? Tipo, James Dean foi um adolescente mal-humorado em Juventude transviada — tenho o pôster: é o melhor pôster de filme que existe, o melhor filme que existe, e o astro de cinema mais sexy que já existiu; por quê, por quê, por que tinha de morrer? —, logo, James Dean obrigatoriamente seria viciado em videogames? Ah, espere um pouco. Exatamente. No entanto, não há por que dizer isso à mamãe, uma vez que é lógico, e ela não acredita emlógica, apenas em horóscopos e chá verde. Ah, e, claro, no Daily Mail. OS OITO SINAIS DE QUE MINHA MÃE É VICIADA NO DAILY MAIL: 1. Lê o jornal todos os dias.
2. Acredita em tudo o que este diz. 3. Se tentar tirá-lo dela, ela o puxa de volta com força e diz “solte!”, como se você estivesse tentando sequestrar seu bebê precioso. 4. Quando lê uma matéria assustadora a respeito de vitamina D, ela nos faz tirar as camisetas e “tomar banho de sol” (está mais para banho de frio). 5. Quando lê uma matéria assustadora sobre melanoma, ela nos enche de filtro solar. 6. Quando lê uma matéria a respeito de “O Creme facial que REALMENTE funciona”, ela o encomenda imediatamente. Tipo, saca o iPad no mesmo instante, onde estiver. 7. Se não o puder ler durante as férias de fim de ano, tem sintomas de abstinência severos. Sério, aquilo, sim, é irritabilidade e mau humor. 8.
Uma vez tentou se abster durante a Quaresma. Não durou nem a manhã inteira. Enfim. Não há nada que eu possa fazer acerca da trágica dependência de mamãe, exceto rezar para que não faça muito estrago em sua vida (já fez um estrago dos grandes na sala de estar, depois de ter lido a matéria de “design de interiores” — “Por que não pintar você mesmo toda a mobília?”). Logo depois, Frank entra tranquilamente na cozinha, vestindo sua camiseta preta “FAÇO MODS, LOGO EXISTO”, com os fones nos ouvidos e o celular na mão. Mamãe abaixa o jornal e o fita como se escamas tivessem sido tiradas de seus olhos. (Nunca entendi esse termo. Escamas? Por quê? Bem. Que seja.) — Frank — chama ela. — Quantas horas já passou em jogos de computador esta semana? — Defina jogos de computador — pede meu irmão, sem tirar os olhos da tela do telefone. — O quê? — Mamãe olha para mim, incerta, e dou de ombros. — Você sabe. Jogos de computador. Quantas horas? FRANK! — grita ela, quando o filho não faz menção de responder.
— Quantas horas? Tire essas coisas da orelha! — O quê? — indaga ele, tirando os fones de ouvido e piscando para ela como se não tivesse escutado a pergunta. — É importante? — É, é importante, sim! — retruca ela. — Quero que me diga quantas horas gasta por semana com jogos de computador. Agora. Faça as contas. — Não dá — responde ele, com calma. — Não dá? Como assim, não dá? — Não sei a que você está se referindo — explica meu irmão, com paciência adquirida commuito esforço. — Está falando literalmente de jogos de computador? Ou de qualquer jogo de tela, inclusive aqueles do Xbox e PlayStation? Também está incluindo os jogos de celular? Seja mais específica. Frank é tão idiota. Será que não via que mamãe estava acumulando energia para soltar umesporro daqueles? — Estou falando de qualquer coisa que entorpeça sua cabeça! — responde ela, brandindo o Daily Mail. — Tem noção dos perigos desses jogos? Não percebe que seu cérebro não está se desenvolvendo adequadamente? O CÉREBRO, Frank! O órgão mais precioso que você tem. Frank solta uma risada sarcástica, e não consigo deixar de dar um risinho. Ele é bem engraçado, para falar a verdade. — Vou ignorar isso — afirma mamãe, com seriedade. — Só comprova o que eu dizia.
— Não, não comprova — rebate meu irmão, abrindo a geladeira, pegando uma caixa de leite achocolatado e bebendo direto da embalagem, o que é nojento. — Não faça isso! — exclamo, enfurecida. — Tem outra caixa. Relaxe. — Vou colocar um limite nesse seu jogo, mocinho. — Mamãe bate no jornal para enfatizar o que diz. — Já deu. Mocinho. Quer dizer que vai arrastar meu pai para dentro do rolo. Sempre que começa a usar mocinho ou mocinha, é certo: no dia seguinte acontece alguma reunião familiar sinistra, na qual papai tenta apoiar tudo o que mamãe diz, ainda que não consiga sequer acompanhar metade da história. Enfim, não é problema meu.
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